terça-feira, 1 de maio de 2012

O que você vê quando não pode ver?

  Senti um vento gélido soprar contra a minha face, imaginei que alguém tivesse aberto a porta. Abriu mesmo, pois ouvi o barulho que a minha casa faz. Dei o primeiro passo pra frente, embora não soubesse aonde a frente estava. Acertei a direção, ao notar que um cheiro quente de feijão verde invadiu minhas sensações. Nunca tinha sentido um cheiro tão bom e forte como esse. Fui seguindo o aroma até lembrar que a mesa da sala ficava por ali e eu podia me esbarrar a qualquer momento. Então parei e deixei o vento balançar o meu cabelo, fazendo suavemente cócegas nas minhas bochechas. Me lembrei que nunca tinha ficado em pé, parada e apreciando o vento. Sempre chego em casa com pressa, entro correndo para deixar minhas coisas no quarto e vou almoçar. Dessa vez nem sabia aonde meu quarto estava. Andei mais um pouco, seguindo meu instinto, até ter a sensação de estar perto de algo. Fui tateando, até perceber que era a peça da sala. Minhas lembranças fizeram-me seguir reto. Deslizei minha mão sobre a superfície do móvel, sem me importar com alguns objetos que foram caindo com o meu toque. Entrei em outro ambiente. Pelo silêncio, era meu quarto. Procurei algo para me apoiar, mas não encontrei nada, decidindo tirar o tênis ali mesmo. Abaixei-me, tocando no chão frio, com a ponta dos dedos, desamarrei o primeiro cadarço, tirei o tênis, a meia e coloquei o pé no chão. Fiz o mesmo com o outro pé e permaneci aonde estava. Meu quarto, que antes eu achava tão pequeno, virou um universo e eu me perdi. Me perdi por não perceber que estava perdida. Voltei, trilhando o mesmo caminho. Consegui chegar no meu lugar da mesa. Sentei na cadeira, percebendo o quanto ela era macia, nunca tinha notado o tamanho do conforto que ela é capaz de proporcionar. Peguei meu prato redondo e raso. O cheiro da comida ficou ainda mais forte. Minha mãe me entregou a colher e colocou minha mão na direção de uma das panelas. Pela consistência, era o cheiroso feijão verde. Coloquei um pouco no prato. A outra panela provavelmente era de arroz. Cheirei. O leve aroma de alho e cebola me fizeram ter certeza. Ainda com a colher  cheia de arroz, fiquei tentando lembrar em que lado do prato tinha colocado o feijão e o espaço que ele tinha tomado. Não adiantou nada eu passar esses anos estudando coordenadas geográficas, o Norte, Sul, Leste e Oesta desapareceram, nenhuma bússola iria me salvar nesse momento. Joguei o arroz em qualquer lugar do prato e tentei misturar com o feijão. Peguei um pedaço de peixe e coloquei no prato também, sem ter noção alguma de como estava aquela bagunça. A primeira garfada veio vazia, só consegui sentir o gosto do garfo, que não tinha gosto algum. Tentei novamente, consegui dar uma garfada um pouco mais cheia. O feijão estava no ponto certo, macio, bem temperado e o arroz estava crocante, com pedacinhos quase imperceptíveis de alho. Acabei o almoço, um pouco irritada com a minha falta de jeito com os outros quatro sentidos. Levantei, topei o dedo mindinho no pé da mesa e fui deitar na minha cama macia. Fiquei pensando em quantas coisas fogem da nossa vista e a gente acaba não vendo de verdade, em como nossa visão é limitada e nos limita. O som do despertador cortou meus pensamentos ao meio, mas como não estava vendo nada, deixei o despertador tocando, até virar uma musiquinha de ninar. Quando levantei, ao invés de ir correndo estudar, fiquei parada, deixando o vento balançar o meu cabelo silenciosamente, fazendo cócegas nas minhas bochechas. Abri os olhos e sorri.


(Para Bruna Nogueira, que engravidou dessa ideia e eu fiz o parto.)

2 comentários:

  1. mamari, belo texto, publique isso now! Agora quero que você fique sem ouvir, que tal textos sobre a falta de audição? Não sei se você sabe, mas meu irmão mais velho é deficiente auditivo!

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  2. Amei a ideia! Vou fazer seu parto também! oeiroeiroe. Já publiquei o texto, só não divulguei! :B hehe

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